O cantor Marcos Almeida, vocalista da banda Palavrantiga, concedeu uma entrevista ao jornalista Filipe Albuquerque, da revista Billboard Brasil, na qual falou dos rótulos que a banda vem rompendo com seu trabalho.
Na matéria o jornalista afirma que “para além de rótulos e segmentos, artistas evangélicos buscam circular livremente no pop brasileiro”, e trata da distinção que ainda existe no mercado fonográfico brasileiro entre a música religiosa e a música secular.
Na entrevista, divulgada na íntegra em seu blog, Almeida afirma que não se identifica com mercados específicos e que esse tipo de distinção entre o gospel e o secular é um maniqueísmo similar ao criado em torno de partidos de esquerda e direita. Respondendo sobre como se identificam como banda nesse ambiente, o cantor afirma representar a “brasilidade dos que creem”.
– Representamos a brasilidade dos que creem, onde a vivência pessoal e comunitária da fé se torna uma forte matriz que sempre esteve imbuída e misturada nessa amálgama chamada cultura brasileira – destaca.
– A novidade está aí: não fazemos da nossa mensagem um fator de distinção estilística, utilizamos parâmetros musicais para fazer distinções musicais. É por isso que nos sentimos mais a vontade com o termo “rock nacional” – completa.
O cantor falou ainda sobre o fato de as músicas do Palavrantiga circularem bem entre os meios gospel e secular, e afirmou que o mercado religioso é muito engessado, mas ainda rentável, mas que não o vê como uma boa forma de comunicar sua mensagem. Ele destaca ainda a importância de “não transformar o palco num púlpito, nem fazer do púlpito um palco”.
Comentando ainda essa característica da banda em agradar públicos tão diferentes, Marcos Almeida cita que existem músicas do Palavrantiga sendo tocadas tanto em igrejas como em barzinhos, além de rádios religiosas e seculares.
Questionado sobre o fato da banda não se prender a chavões cristãos como outros artistas do meio gospel, o cantor foi enfático ao afirmar:
– Acredito que estamos cantando em português brasileiro aquilo que se cantava apenas em evangeliquês tupiniquim.
O cantor afirma ainda que “música de adoração fora do ambiente de adoração não faz muito sentido”.
Leia a entrevista na íntegra:
1.Vocês, juntos com a Tanlan, o Aeroilis, o Adorelle e alguns outros nomes, sinalizam uma outra direção pra música cristã feita no Brasil, pra algo que já acontece nos EUA, onde esse modelo de mercado foi criado, e onde algumas bandas conseguem transitar entre os dois universos sem necessariamente estabelecer muros e divisões, como fez o Catedral no início dos anos 2000 ao adotar o discurso de deixar um mercado para ir ao outro. Entendem que esse pode ser o modelo que de fato permita essa transição de maneira natural e espontânea: É esse o objetivo de vcs?
Olá, tudo bem? Antes de mais nada, muito obrigado pela gentileza da entrevista e por nos dar a oportunidade de compartilhar a visão da banda a respeito dos temas.
É importante, neste nosso primeiro encontro, começar dizendo que as categorias que utilizamos como fonte para a nossa identidade não são as mesmas que o mercado estabelece para definir suas prateleiras. Portanto, não faz sentido para nós descrever personalidade artística usando termos do mercado fonográfico tradicional. O que acontece é que quando temos a oportunidade de desenvolver a nossa personalidade em volta de algo mais amplo, a nossa experiência cotidiana se torna mais rica, mais cheia de temas, mais colorida. Então, a facilidade que o nosso som tem de transitar nesses circuitos deve-se ao conteúdo humano, estético, espiritual e poético do nosso fazer artístico – ou seja, aspectos reais anteriores ao mercado. Entende?
Sobre o Catedral, não compartilhamos de suas intenções – no fundo desconhecidas para todos nós. Aliás, no inicio da caminhada cheguei a enviar um longo e-mail para o Kim, perguntando sobre alguns assuntos que até hoje beiram a lenda urbana, especificamente sobre essa migração da banda para o secular. Não tive resposta. Mas, de qualquer forma, conseguimos ver que utilizar o pensamento de que “é preciso deixar o religioso para ir ao secular”- ou como você colocou, “deixar um mercado para ir ao outro”, é reforçar certo maniqueísmo próximo aos formatos partidários de esquerda e direita. Quem toma partido fica partido! Inda mais se pensarmos que a experiência do Evangelho nos permite enxergar o mundo sobre um único chão de dádiva e beleza – um chão comum sobre o qual constroem-se partidos, cercas e muros, mas onde também podemos trilhar um caminho de liberdade. Pois bem, as escolhas musicais, acredito, devem ser feitas na direção daquilo que nos torna inteiros e plenos, sem posições partidárias ou esquizofrênicas.
Aí, você já deve estar querendo saber; mas como vocês se identificam? Gostamos de nos alinhar ao pensamento clássico de cultura brasileira; tradição construída por intelectuais como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Sergio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta e Darcy Ribeiro, que são unanimes em dizer que não existe um Brasil, mas brasis. Não existe uma brasilidade homogênea, mas muitas brasilidades. Ou seja, representamos a brasilidade dos que creem, onde a vivência pessoal e comunitária da fé se torna uma forte matriz que sempre esteve imbuída e misturada nessa amálgama chamada cultura brasileira (uma busca no cancioneiro popular comprova isso). A novidade está aí: não fazemos da nossa mensagem um fator de distinção estilística, utilizamos parâmetros musicais para fazer distinções musicais. É por isso que nos sentimos mais a vontade com o termo “rock nacional”.
Qualquer modelo que fuja dessa proposta não-dicotômica é limitadora. Quanto aos amigos da Tanlan, acredito que se alinham com aquilo que pensamos. Não só eles, mas podemos citar também a Lorena Chaves e a banda Crombie.
2. Apesar de circularem bem nos dois ambientes, estão bem ligados ao universo cristão, ainda bem engessado em alguns aspectos, que só entendeu o que é distribuição digital no ano passado. Como é ser uma banda cheia de referência estéticas pop, com a cabeça pensando além dos muros da igreja, mas ter de lidar com algumas contradições do segmento cristão?
A maior contradição a ser vencida pelos líderes cristãos fica evidente quando vamos definir os limites e as possibilidades neste processo de aproximação do Templo com a Rua. Como a Igreja deve se relacionar com a cultura? Ninguém sabe muito bem. A força de um mercado religioso interno impõe respeito – embora ainda engessado, como você colocou, ele é muito rentável. Mas será que exportar as vivências do templo para a rua é o melhor caminho? Tenho receio de que tudo isso se torne banal, artificial e sem o mistério precioso que envolve a experiência comunitária. O que fazemos é buscar respeitar a soberania dessas duas esferas e o modo de ser de cada uma delas. Não transformar o palco num púlpito, nem fazer do púlpito um palco. Essa é a regra.
3. Vocês fizeram o caminho natural – começaram independentes e assinaram com uma major. O que a independência ensinou a vocês: Qual o nível de liberdade dado pela gravadora à banda? Em algum momento houve algum tipo de restrição?
Aprendemos no independente a trabalhar em família. As esposas, os amigos e parentes foram e ainda são os maiores interessados na divulgação do nosso trabalho. A aproximação com o público mais alternativo – a maioria bastante contrária a ideia de gravadora – nos foi muito útil para fortalecer os princípios de liberdade artística. E quando reconhecemos que não estávamos dando conta de atender toda a demanda, tivemos que nos abrir para as parcerias. A Som Livre faz parte da história da música brasileira. Saber que nomes como Tim Maia, Novos Baianos, Gal Costa, Djavan e tantos outros artistas que admiramos fizeram boa parte de seus trabalhos em parceria com a companhia e que agora temos a oportunidade de ouvir dessa experiência, é muito legal. O contrato com a Som Livre chegou em hora oportuna. Além de suprir essas necessidades de distribuição num pais continental igual o nosso, a Som Livre nos deu a oportunidade de falar o que a gente pensa e trilhar esse caminho diferente que estamos propondo. Ela se mantém viva ao respeitar e representar a diversidade cultural do nosso povo.
4. Como vocês avaliam a entrada de companhias como a Sony e a Som Livre no segmento gospel? Entendem como algo natural, saudável pro segmento? Não há uma sensação, ainda que pequena, de que, pelo visível crescimento da população evangélica no país, as majors passaram a olhar para esse público?
Se uma grande companhia fonográfica tem a missão de exibir a realidade cultural de um povo, obviamente ela deve se adequar às mudanças naturais que qualquer cultura sofre no passar do tempo. Olhar para o público evangélico é ser coerente com a sua função.
Quanto ao modo de fazer as coisas, o jeito de operar essa inserção no mercado religioso, acredito que todos estão a descobrir os limites e possibilidades. Tocar em símbolos da fé é sempre perigoso. Justificar seus produtos com argumentos eclesiásticos e ideológicos certamente encontra tensões quando se tira vantagens comerciais sobre eles. Então, torço para que tão logo esses dilemas sejam solucionados. Aqui, estamos abrindo uma trilha que nos parece virar um novo caminho, onde os novos artistas cristãos ao fazer musica de rua se apropriam das regras da rua e jogam com ela, sem achatar a experiência da fé ou subjugar a cultura pop com argumentos proselitistas.
5. O público evangélico, normalmente reticente quanto a novidades e experimentações – ainda que com apelo pop – tem recebido bem o som de vcs? E quanto ao público não cristão?
Somos uma banda bem jovem, apesar do nome, rsrs. Juntamos os devaneios e as guitarras elétricas em 2008. E nessa vontade de aprender e reconhecer a vida do jeito que ela é, fomos presenteados com muito carinho vindo de toda parte. Lembro da primeira vez que tocamos juntos em Belo Horizonte. No final, um amigo chegou perto e disse: “Marquim, essa música que você fez dá pra tocar no culto e no boteco aqui em baixo!” hahaha. Rimos até! Mas, ele acabou sendo um tipo de profeta, vamos dizer assim, porque sem querer, sem planejar, sem pretensão alguma, as composições foram indo e assumindo lugar na trilha sonora de rádios religiosas e não religiosas, nos cultos e nos barzinhos.
6. Falem um pouco sobre o que vocês têm ouvido ultimamente e o que serve de referência pra vocês na hora de compor, gravar…
Cada um tem suas referências; desde a guitarra do The Edge na forma de tocar do Josias, passando pelo groove do reggae nas linhas do Felipe, à simplicidade pop da bateria de Lucas, até as harmonias mais brasileiras das minhas composições. No disco “Sobre o mesmo chão” que acabamos de lançar, você vai perceber essa química. Vai encontrar Jorge Ben Jon, U2, Sigur Rós, Nelson Cavaquinho, Morais Moreira, Bon Iver e até Beethoveen, mas principalmente como as nossas limitações processaram essas informações musicais. A música que expressamos na Igreja também é outra influência ímpar nesse dna musical. Quando entramos em studio não ouvimos nada. Fazemos alguma audição de referência na pré-produção, para ir construindo os timbres, mas tentamos deixar a equipe técnica captar aquilo que surge ali na hora, quando estamos apenas tocando e interpretando as canções.
7. Vejo em vocês uma preocupação com timbres, com produção, com estetica, com conexão com o que acontece atualmente no rock hoje. Isso de fato parece uma marca dessas bandas que eu citei anteriormente, além do desejo (me parece) de evitar chavões evangélicos e uma postura estereotipada. Vocês acreditam que isso é o que diferencia vocês de duas gerações atrás, de nomes como Rebanhão, Katsbarnea, Resgate, Oficina G3, que ficaram presas demais a elementos religiosos e não conseguiram romper o muro entre o segmento cristão e o não cristão? Voces ouvem essas bandas? Elas servem de referencia pra voces?
Acredito que estamos cantando em português brasileiro aquilo que se cantava apenas emevangeliquês tupiniquim. Estamos mostrando que é possível essa tradução. Dizer que realidades especificas na vida daquele que experimenta a Boa Nova só podem ser expostas em linguajar evangélico não é verdade. A língua que usamos é a língua da rua, da literatura e da poesia – que em muito se aproxima da linguagem religiosa pois também trata do mistério, do invisível e da alma.
As bandas que você citou fizeram parte da nossa vivencia e encontrar recentemente o Resgate e Oficina G3 nos palcos foi sensacional. Admiramos a integridade com a visão que anunciam desde a década de 80 e de fato, o que fazemos hoje só é possível porque eles criaram uma plataforma anterior. Eles são o melhor exemplo de uma aspecto vivo dessa matriz cristã que enriquece a nossa cultura. Nesse sentido estamos muito mais próximos deles do que dos Titãs ou Engenheiros, por exemplo. O que nos diferencia é o conjunto de responsabilidades que uma nova banda deve assumir quando se reconhece que em muitos aspectos a guerra deles já foi ganha. Os desafios hoje são outros, não é mais lutar para tocar rock na igreja, ou fazer uma programação contemporânea e descolada para a juventude. Eles nos empurram pra trabalhar forte no sentido de descomplicar nosso lugar no mundo – ali no meio da rua. Sem partido, sem grife religiosa, fazendo o que um artista deve fazer.
8. Nos últimos 8, 10 anos, houve uma explosão de cantores, cantoras e ‘adoração profética’ no universo cristão no país, o que acabou criando um gesso e cansando até mesmo boa parte dos cristãos. Acham que já estava na hora de um respiro? Esse respiro representado pela geração de vocês pode fazer com que um público resistente ao que se apresentou a ele como música cristã possa se interessar por ela?
O movimento de “adoração” representado por David, Cirilo, Heloísa Rosa (aliás, fomos banda de apoio dela durante 4 anos) , teve grande importância no sentido de retirar um outro gesso que prendia o canto comunitário. Eles trouxeram uma liberdade carismática muito aguardada principalmente pelos jovens. Uma força espiritual singular brotou desse movimento, e quem experimentou dela de forma saudável, ainda hoje, reconhece suas marcas positivas. O lance aqui é o mesmo que apontei acima, exportar a experiência do Templo (ou das reuniões cristãs ) para a Rua gera muitas tensões. Justificar tudo isso com argumentos evangelísticos, mas sem o trabalho de tradução, soa como uma língua estranha, às vezes como um discurso cheio de segundas intenções. Além disso, o fato da música estar subjugada por outros interesses a torna desinteressante para muitos ouvidos. Me parece que a música de adoração fora do ambiente de adoração não faz muito sentido, ela é uma música-experiência. Daí, é muito difícil aprecia-la isoladamente como obra de arte.
Tivemos a graça de fazer um som que reflete essa força espiritual e que tem certo interesse estético. Determinado ouvinte pode se apegar mais a sonoridade em si e outro se empolgar com a mensagem. Mas ainda não sabemos como isso acontece. O fato é que nem todos vão se abrir para o aspecto transcendente da nossa arte e nem por isso a sua experiência deve ser desmerecida pois ela também é válida. Acredito que nossa geração tem a oportunidade de fazer musica brasileira que comunique a vida que a gente vive sem se preocupar em escolher ouvintes. O nosso cenário hoje é muito promissor e devemos aproveitar essa jornada para reforçar a liberdade de ser e criar. Assim seja!
Por Dan Martins, para o Gospel+